quinta-feira, 21 de novembro de 2024

Brasil

Dom Casmurro: a misoginia que silenciou Capitu

POR | 17/11/2018

O vilão não é quem você pensa.

Dom Casmurro: a misoginia que silenciou Capitu

Redação Jornal Somos

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Há 119 anos Dom Casmurro era publicado pela Livraria Garnier, o terceiro romance da “Trilogia Realista” de Machado de Assis. O enredo conta a história de Bento Santiago, ou Bentinho, dono do apelido de Dom Casmurro, que pretende narrar em um livro as suas lembranças de vida. Ele relata sua juventude, seu tempo no seminário, seu relacionamento com Capitu e o ciúme resultante dele, que se torna o foco principal do romance. Sua ambiguidade é tema de discussões até hoje e as suas análises levam a diversos caminhos.

 

 

Apesar de ser um livro centenário, Dom Casmurro trata de temas atuais. Por exemplo, a imagem da mulher submissa. A narrativa se passa através do ponto de vista soberano de Bentinho, e seu discurso nunca é neutro. Capitu é representada de acordo com representações normativas que firmam a estrutura patriarcal da sociedade, e isso reflete fortemente na figura feminina que é mostrada até hoje como natural. A voz de Capitu, heroína do romance, é silenciada. Seu retrato foi passado a nós por um homem que nunca a entendeu.

 

 

A imagem de mulher que a sociedade do Segundo Império, época em que se ambienta o romance, produzia e cultuava era de que o feminino já tinha características predeterminadas, como: observação, sentimentos, fragilidade; e por outro lado, os traços de força e poder seriam exclusivamente masculinos. Como Capitu foge desse modelo pré-estabelecido, ela é julgada todo o tempo apenas por ser uma mulher forte. É vista por muitos críticos como a culpada pela ruína de Bentinho, pois supostamente o traiu com o melhor amigo e o enganou com um filho duvidoso.

 

 

Bentinho pouco dialoga com Capitu, de modo que suas suspeitas se fundamentam em seus gestos e aparências. A icônica frase: “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, dita por outro personagem, e que foi o ponto inicial dos ciúmes de Bentinho ainda na juventude mostra como ele tenta acusar Capitu usando de argumento características que são naturais a ela. Ele manipula o discurso para retratá-la como a vilã da história. Ele usa acontecimentos de sua infância para mostrar ao leitor que a mulher já era ardilosa desde sempre, mas na verdade isso mostra a covardia e a desconfiança dele.

 

 

Outra ótica sobre a narrativa é o relacionamento abusivo. O sentimento doentio de Bentinho por Capitu, transforma seu amor infantil em ódio. Toda a sua suspeita em torno dela se baseia na sua total fé de que ela teve um caso com o seu melhor amigo do seminário, Escobar. A partir disso, ele passa a menosprezá-la e procurar todo e qualquer pretexto para a sua acusação. E no decorrer do casamento, Capitu passa a ceder à todas as vontades de seu marido. Esse comportamento não é natural da heroína, pois ela tinha a natureza forte, destemida e persuasiva.

 

 

O romance mostra um homem defeituoso quanto aos valores da mulher. Um machista um pouco sutil, sem mencionar a sua óbvia possessividade. Bentinho é um homem inseguro desde sempre, e para aliviar essa segurança ele acaba reduzindo a grandiosidade de Capitu. Bentinho tem surtos psicóticos em decorrer de seu ciúme, em certa ocasião planeja até matar o filho dele com Capitu, mas desiste. Sua tendência paranoica é suposta no início da trama, com a menção dos imperadores César, Augusto, Nero e Massinissa, todos conhecidos por terem matado as suas esposas adúlteras.

 

 

Mais uma análise é a da sociedade homoafetiva. Quando Bentinho conhece Escobar, ele passa a admirá-lo de uma forma intensa. Ele às vezes até anula suas opiniões para concordar com ele. Escobar, apesar de fazer parte das suspeitas de Bentinho, jamais é retratado como mau ou dissimulado. Enquanto os olhos de Capitu são dissimulados, os de Escobar são “dulcíssimos” nas palavras de Bentinho. Ele é visto por todos os personagens como uma pessoa admirável, bondosa e perfeita. O típico comportamento sexista masculino de apenas respeitar, admirar e confiar em outros machos.

 

 

O sentimento de Bentinho por Escobar é tão profundo que há aqueles que acreditam que na verdade ele tinha ciúmes de Capitu porque nutria um amor platônico por Escobar. Um dos motivos dessa suspeita é que Bentinho só percebe que ama a moça quando ouve sua família falando sobre o assunto, de forma que permite dizer que o relacionamento dos dois foi induzido. E quando conhece Escobar, seu afeto por ele nasce naturalmente. Além disso, a descrição de seus momentos com Capitu não é tão intensa quanto a descrição de seus momentos do Escobar.

 

 

Até hoje tido como um dos maiores romances da literatura brasileira, Dom Casmurro vale a leitura. Seu caráter misterioso é instigante e as possíveis análises permitem que o leitor conheça o inimaginável.

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